domingo, 16 de novembro de 2025

A Obra que se traduz ao Mundo

 

O Pequeno Príncipe: A Obra que se traduz ao Mundo

 

José Marcos Ramos

 

Há livros que viajam mais longe do que seus autores jamais poderiam imaginar. O Pequeno Príncipe, publicado em 1943, nasceu bilíngue — francês e inglês —, mas talvez nem mesmo Saint-Exupéry suspeitasse que sua criação se tornaria um dos livros mais traduzidos do planeta. A ponto de ocupar, entre as obras literárias, um lugar singular: nenhum outro título ficcional atravessou tantas fronteiras linguísticas quanto ele.

 

Costuma-se dizer que os três livros mais traduzidos do mundo são a Bíblia, o Alcorão e O Pequeno Príncipe. Os dois primeiros são textos religiosos e fundadores; já o terceiro é um pequeno relato poético, de aparência infantil, mas dotado de um alcance simbólico que fala à humanidade inteira. É justamente aí que reside o seu mistério: por que um livro tão breve, escrito em plena guerra, alcança tamanha universalidade?

 

Talvez porque, ao contrário dos tratados filosóficos e dos romances monumentais, O Pequeno Príncipe se dirige ao núcleo essencial da condição humana: o desejo de sentido, a preservação da imaginação, a simplicidade que o mundo adulto insiste em abandonar. Cada tradução não é apenas a passagem de palavras de uma língua para outra — é uma transmissão de sensibilidade.

 

A tradução como gesto de permanência

 

O fato de a obra já ultrapassar quatrocentas traduções não é simples curiosidade estatística. É indício de que ela foi adotada, apropriada e reinventada por culturas as mais diversas. As traduções não são uníssonas: cada idioma oferece ao texto um novo brilho, um novo sotaque afetivo.

 

No Brasil, a primeira versão apareceu em 1952, por Dom Marcos Barbosa, monge beneditino mineiro. A escolha não foi casual. Um tradutor que também era poeta sabia que o essencial do livro não estava apenas no sentido literal das frases, mas na cadência, na delicadeza, no silêncio entre as palavras.

O Pequeno Príncipe brasileiro, assim, nasceu sob mãos que compreendiam tanto a espiritualidade quanto a poesia — dimensões inseparáveis da obra.

 

As línguas que resistem, mesmo quando morrem

 

Há algo de profundamente simbólico no fato de O Pequeno Príncipe ser traduzido também para línguas mortas. Latim, grego antigo, sânscrito, egípcio, alemão antigo, francês antigo: idiomas que já não ecoam nas ruas, mas sobrevivem na memória escrita.

 

Traduzir um livro moderno para uma língua extinta é um gesto de arqueologia literária, mas também de preservação. É como se cada tradução dissesse:

“Mesmo aquilo que o tempo silenciou ainda pode acolher a beleza.”

 

O mesmo ocorre com dialetos regionais. Muitas escolas adotam edições do livro para manter viva a fala dos avós, das aldeias, dos vales. A obra, que nasceu em meio ao ruído da Segunda Guerra, torna-se assim instrumento de continuidade cultural.

 

Traduções que brincam com o possível

 

Se a obra fala ao coração, ela também desperta o jogo. Algumas traduções beiram o experimentalismo: uma edição espelhada, legível apenas diante do espelho; outra turca, na qual cada cor corresponde a uma letra; outra ainda depende de celular para ser decodificada.

E há, claro, a tradução para o klingon — a primeira língua não humana criada pelo imaginário da ficção científica.

É como se o livro confirmasse sua própria mensagem: o essencial só se vê com o coração, mas a imaginação também exige seus brinquedos.

 

Saint-Exupéry: o homem que escreveu o voo

 

Para compreender o alcance de seu livro, é preciso lembrar de seu autor. Antoine de Saint-Exupéry não era apenas escritor: era aviador, repórter, pioneiro de rotas aéreas que conectaram continentes. Viveu entre o risco e a contemplação, entre o céu e a palavra.

Sua morte, em 1944, em missão de reconhecimento, sela a imagem de um autor em permanente travessia — física e espiritual.

 

Talvez por isso O Pequeno Príncipe fale tanto ao sentimento humano de exílio, de busca, de viagem interior. O menino que vem de um asteroide distante é, de certo modo, a figura do viajante eterno que Saint-Exupéry sempre foi.

 

Por que seguimos traduzindo?

 

A pergunta permanece: por que traduzir tantas vezes um livro já conhecido? Porque cada época lê O Pequeno Príncipe à sua maneira. Porque cada língua oferece uma nuance diferente do afeto.

E, sobretudo, porque a obra se tornou uma espécie de espelho da humanidade — um lugar onde adultos reencontram a criança perdida e onde crianças descobrem a profundidade do que ainda não sabem nomear.

 

Traduzir O Pequeno Príncipe é, em última instância, traduzir a si próprio.

 

Eu, colecionador de suas edições, testemunho isso:

cada livro, vindo de canto remoto do mundo, parece dizer a mesma frase com nova ternura.

E é essa multiplicidade que mantém a obra viva.

Não apenas como literatura, mas como experiência.

sábado, 13 de abril de 2024

O Pequeno Príncipe

Ele chegou de mansinho

Pedindo para desenhar um carneiro

Era só o que queria

 

Como tinha muitas histórias.

Foi contando devagarinho

Falou do seu asteroide

 

Sem esquecer dos três vulcões

E também dos baobás

 

Falou da sua rosa

E do amor

Que surgiu de um botão

 

Do desgosto que sempre há

Nos casos de amor

 

Falou das suas viagens

Dos asteroides que conheceu

Estava procurando amigos

 

Nem o Rei

Nem o vaidoso

Muito menos o beberão

Seus amigos se tornaram

 

O home de negócio nem pensar

O acendedor de lampião

Podia até ser

Devido ao pôr do sol

 

No planeta Terra, ele se encontrou

Finalmente um amigo

A raposa cativou

Ensinando as lições

Que ele também me ensinou

 

Foi assim que conheci

Há 81 anos

O menino que me cativou


José Marcos Ramos

 

sábado, 29 de julho de 2023

Prefácio de Valter Hugo Mãe para a edição do Principezinho da Editora Porto.

 

Bula

    A literatura, sabemos bem, é uma disciplina da saúde. Claramente do universo da profilaxia, a literatura faz parte da nutrição, implica com as vitaminas, com o magnésio, o ferro, tem que ver com a robustez cardíaca. Alguns livros, defendo muito, são produtos de farmácia, deviam ser receitados nos hospitais e trazer bulas detalhadas que responsabilizassem os cidadãos para a urgência de ler. O mundo dos livros, no mínimo, tem de ser visto com o cuidado preocupadíssimo com que lidamos com a frescura dos legumes, o prazo dos iogurtes ou o comportamento dos ovos numa taça de água. Quem acha que vive bem das tensões, do colesterol ou da diabetes sem ler livros está enganado.

    Quando Antoine de Saint-Exupéry, em 1943, publicou O Principezinho, estava, talvez sem o haver completamente percebido, a oferecer ao mundo uma das obras mais cuidadoras de sempre. Cuidadora no sentido importante do humanismo, capaz de transformar existências sem profundidade em gente, como se, da forma mais simples, soubesse solucionar conflitos e impasses, deixando o leitor num estado de franca redenção. A leitura nem sempre redime e a realidade não é passível de ser explicada ou iludida por qualquer palavra, mas o que acontece é que, embora raramente, há livros que se colocam como aquele metal fundente entre as pessoas. São inclusões, distribuem direitos, proporcionam a igualdade possível.

    Ler e reler O Principezinho é uma tarefa de felicidade. A sua candura é toda ela inteligente contra qualquer ceticismo, derrotismo, hipocrisia ou maldade. Porque não se trata de um livro para crianças, trata-se de um livro para todas as pessoas, inclusive crianças. Frequentemente considerada a mais importante obra de língua francesa do século XX, uma das mais traduzidas e vendidas da história da Humanidade, o encontro de um aviador com um encantador desconhecido e a transformação do acaso numa profunda amizade têm moldado os sonhos e os gestos de milhões de leitores.

    Claramente inspirado na experiência pessoal de Saint-Exupéry enquanto piloto, e impressionado com o terror nazi que à época transformava a Europa e o mundo num lugar horrendo, O Principezinho é uma reclamação de liberdade, um manifesto de dignidade que funciona pela sua simplicidade aparente. Feito de filosofia, a maturidade do autor levou ao texto essa glória de verdadeiramente iluminar. Ele conta-nos acerca do fundamental de acreditar e do quanto só se justificam as oportunidades pela limpidez de carácter.

    A edição que a Porto Editora agora apresenta é de um rigor medicinal. Repõe-se a versão original (por exemplo, o astrónomo volta a ver a estrelinha que desaparecera das edições portuguesas e o asteroide passa a ter o nome corrigido), que é o mesmo que dizer que se repõe em todo o esplendor essa inesgotável energia perplexa e apaixonada de que Antoine de Saint-Exupéry foi capaz. E os tempos não podiam urgir mais por um regresso em força a esta aventura. Se é verdade que a política traz cada vez menos esperança ás pessoas, é cada vez mais certo que nos devemos balizar a partir da grande memória do que já se aprendeu, e da profunda sabedoria do mundo faz parte este livro. Deitar-lhe a mão é deitar a mão à oportunidade de melhorar.

Valter Hugo Mãe