sábado, 29 de julho de 2023

Prefácio de Valter Hugo Mãe para a edição do Principezinho da Editora Porto.

 

Bula

    A literatura, sabemos bem, é uma disciplina da saúde. Claramente do universo da profilaxia, a literatura faz parte da nutrição, implica com as vitaminas, com o magnésio, o ferro, tem que ver com a robustez cardíaca. Alguns livros, defendo muito, são produtos de farmácia, deviam ser receitados nos hospitais e trazer bulas detalhadas que responsabilizassem os cidadãos para a urgência de ler. O mundo dos livros, no mínimo, tem de ser visto com o cuidado preocupadíssimo com que lidamos com a frescura dos legumes, o prazo dos iogurtes ou o comportamento dos ovos numa taça de água. Quem acha que vive bem das tensões, do colesterol ou da diabetes sem ler livros está enganado.

    Quando Antoine de Saint-Exupéry, em 1943, publicou O Principezinho, estava, talvez sem o haver completamente percebido, a oferecer ao mundo uma das obras mais cuidadoras de sempre. Cuidadora no sentido importante do humanismo, capaz de transformar existências sem profundidade em gente, como se, da forma mais simples, soubesse solucionar conflitos e impasses, deixando o leitor num estado de franca redenção. A leitura nem sempre redime e a realidade não é passível de ser explicada ou iludida por qualquer palavra, mas o que acontece é que, embora raramente, há livros que se colocam como aquele metal fundente entre as pessoas. São inclusões, distribuem direitos, proporcionam a igualdade possível.

    Ler e reler O Principezinho é uma tarefa de felicidade. A sua candura é toda ela inteligente contra qualquer ceticismo, derrotismo, hipocrisia ou maldade. Porque não se trata de um livro para crianças, trata-se de um livro para todas as pessoas, inclusive crianças. Frequentemente considerada a mais importante obra de língua francesa do século XX, uma das mais traduzidas e vendidas da história da Humanidade, o encontro de um aviador com um encantador desconhecido e a transformação do acaso numa profunda amizade têm moldado os sonhos e os gestos de milhões de leitores.

    Claramente inspirado na experiência pessoal de Saint-Exupéry enquanto piloto, e impressionado com o terror nazi que à época transformava a Europa e o mundo num lugar horrendo, O Principezinho é uma reclamação de liberdade, um manifesto de dignidade que funciona pela sua simplicidade aparente. Feito de filosofia, a maturidade do autor levou ao texto essa glória de verdadeiramente iluminar. Ele conta-nos acerca do fundamental de acreditar e do quanto só se justificam as oportunidades pela limpidez de carácter.

    A edição que a Porto Editora agora apresenta é de um rigor medicinal. Repõe-se a versão original (por exemplo, o astrónomo volta a ver a estrelinha que desaparecera das edições portuguesas e o asteroide passa a ter o nome corrigido), que é o mesmo que dizer que se repõe em todo o esplendor essa inesgotável energia perplexa e apaixonada de que Antoine de Saint-Exupéry foi capaz. E os tempos não podiam urgir mais por um regresso em força a esta aventura. Se é verdade que a política traz cada vez menos esperança ás pessoas, é cada vez mais certo que nos devemos balizar a partir da grande memória do que já se aprendeu, e da profunda sabedoria do mundo faz parte este livro. Deitar-lhe a mão é deitar a mão à oportunidade de melhorar.

Valter Hugo Mãe