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Livros são estranhas criaturas. Independem de seus autores. Percorrem caminhos imprevisíveis. Quase nunca o best-seller de hoje é o clássico de amanhã. Há quanto tempo sumiram das listas de mais vendidos Meu pé de laranja-lima, de José Mauro de Vasconcelos e Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach?
A 29 de junho fez cem anos que nasceu em Lyon, França, Antoine de Saint-Exupéry, autor do célebre O Pequeno Príncipe (1943). Tornou-se a obra mais citada por quem não se destaca pelo hábito de leitura. Nove, em cada dez misses, o mencionam como livro preferido. O que contribui para condená-lo ao limbo das prateleiras de auto-ajuda, sem que a densidade de seu conteúdo uma metáfora filosófica sobre a amizade e o amor seja captada por muitos leitores.
Saint-Exupéry tornou-se piloto de avião aos 21 anos. O gosto pela aventura fez dele, em 1926, um dos pioneiros do correio aéreo, nas perigosas rotas entre a França, a África e a América do Sul. Na década de 30, empregou-se como piloto de provas. Um acidente obrigou-o a ficar um período em terra. De publicitário da Air France (1934), passou a repórter do jornal Paris-Soir, do qual foi correspondente de guerra na Espanha.
Em 1937, aceitou o risco de voar de Nova York à Terra do Fogo. O avião caiu na Guatemala e ele sobreviveu com algumas seqüelas. Alistou-se no serviço de reconhecimento aéreo dos aliados, durante a Segunda Guerra Mundial. Em 31 de julho de 1944, não retornou da missão que o levou a sobrevoar, num Lightning P38, a região entre os Alpes franceses e o Mediterrâneo. Há indícios de que mergulhou próximo ao porto de Marselha e, agora, os destroços da aeronave estão sendo resgatados pela Marinha francesa.
Após sobreviver a duas guerras mundiais e a dois acidentes aéreos, há quem suspeite que Saint-Exupéry tenha, deliberadamente, empreendido uma viagem sem volta. Dotado de um humanismo que oscilava entre o Evangelho de Jesus e o niilismo de Nietzsche, talvez ele quisesse atingir as estrelas e aterrissar no asteróide onde vive o pequeno príncipe.
Saint-Exupéry considerava que "voar ou escrever é a mesma coisa." Quem escreve sabe o quanto a afirmação procede, considerada a precária tecnologia aeronáutica da primeira metade do século. O autor decola num vôo cego, apenas com uma intuição da rota, sem certeza de quando e como será a aterrissagem.
Os vôos literários do criador de O Pequeno Príncipe têm, entretanto, a arte de unir um estilo preciso com profundas reflexões sobre o sentido da vida. Em Correio do Sul (1929), cuja narrativa revela a influência de Gide, ele enfatiza o senso de fraternidade. Na época, cobrindo a rota Casablanca-Dakar, salvou aviadores em pane e libertou cativos das tribos do deserto.
Vôo Noturno (1931) é uma obra que trata das interrogações e angústias do ser humano inquieto frente ao próprio destino. Em Terra dos Homens (1939), que lhe fez merecer o grande prêmio da Academia Francesa, o estilo poético une-se à densidade filosófica do romance. Em Piloto de Guerra, redigido em Nova York, em 1942, ele protesta contra o absurdo do conflito mundial e enfatiza os direitos humanos.
"Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas, como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos" (O Pequeno Príncipe). Nesses tempos em que utopia soa como arcaísmo, competir se sobrepõe à solidariedade e o consumidor é mais valorizado que o cidadão, a obra de Antoine de Saint-Exupéry é um convite ao resgate do humanismo. Deveria ser leitura obrigatória nas escolas.
Frei Betto é escritor, autor de "Batismo de Sangue". A 11ª edição, revista e ampliada, chega às livrarias nesta semana. |
domingo, 15 de fevereiro de 2015
Saint-Exupéry
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