O Pequeno Príncipe: A
Obra que se traduz ao Mundo
José Marcos Ramos
Há livros que viajam mais
longe do que seus autores jamais poderiam imaginar. O Pequeno Príncipe,
publicado em 1943, nasceu bilíngue — francês e inglês —, mas talvez nem mesmo
Saint-Exupéry suspeitasse que sua criação se tornaria um dos livros mais traduzidos
do planeta. A ponto de ocupar, entre as obras literárias, um lugar singular:
nenhum outro título ficcional atravessou tantas fronteiras linguísticas quanto
ele.
Costuma-se dizer que os
três livros mais traduzidos do mundo são a Bíblia, o Alcorão e O Pequeno
Príncipe. Os dois primeiros são textos religiosos e fundadores; já o terceiro é
um pequeno relato poético, de aparência infantil, mas dotado de um alcance simbólico
que fala à humanidade inteira. É justamente aí que reside o seu mistério: por
que um livro tão breve, escrito em plena guerra, alcança tamanha
universalidade?
Talvez porque, ao
contrário dos tratados filosóficos e dos romances monumentais, O Pequeno
Príncipe se dirige ao núcleo essencial da condição humana: o desejo de sentido,
a preservação da imaginação, a simplicidade que o mundo adulto insiste em
abandonar. Cada tradução não é apenas a passagem de palavras de uma língua para
outra — é uma transmissão de sensibilidade.
A tradução como gesto de
permanência
O fato de a obra já
ultrapassar quatrocentas traduções não é simples curiosidade estatística. É
indício de que ela foi adotada, apropriada e reinventada por culturas as mais
diversas. As traduções não são uníssonas: cada idioma oferece ao texto um novo
brilho, um novo sotaque afetivo.
No Brasil, a primeira
versão apareceu em 1952, por Dom Marcos Barbosa, monge beneditino mineiro. A
escolha não foi casual. Um tradutor que também era poeta sabia que o essencial
do livro não estava apenas no sentido literal das frases, mas na cadência, na
delicadeza, no silêncio entre as palavras.
O Pequeno Príncipe
brasileiro, assim, nasceu sob mãos que compreendiam tanto a espiritualidade
quanto a poesia — dimensões inseparáveis da obra.
As línguas que resistem,
mesmo quando morrem
Há algo de profundamente
simbólico no fato de O Pequeno Príncipe ser traduzido também para línguas
mortas. Latim, grego antigo, sânscrito, egípcio, alemão antigo, francês antigo:
idiomas que já não ecoam nas ruas, mas sobrevivem na memória escrita.
Traduzir um livro moderno
para uma língua extinta é um gesto de arqueologia literária, mas também de
preservação. É como se cada tradução dissesse:
“Mesmo aquilo que o tempo
silenciou ainda pode acolher a beleza.”
O mesmo ocorre com
dialetos regionais. Muitas escolas adotam edições do livro para manter viva a
fala dos avós, das aldeias, dos vales. A obra, que nasceu em meio ao ruído da
Segunda Guerra, torna-se assim instrumento de continuidade cultural.
Traduções que brincam com
o possível
Se a obra fala ao
coração, ela também desperta o jogo. Algumas traduções beiram o
experimentalismo: uma edição espelhada, legível apenas diante do espelho; outra
turca, na qual cada cor corresponde a uma letra; outra ainda depende de celular
para ser decodificada.
E há, claro, a tradução
para o klingon — a primeira língua não humana criada pelo imaginário da ficção
científica.
É como se o livro
confirmasse sua própria mensagem: o essencial só se vê com o coração, mas a
imaginação também exige seus brinquedos.
Saint-Exupéry: o homem
que escreveu o voo
Para compreender o
alcance de seu livro, é preciso lembrar de seu autor. Antoine de Saint-Exupéry
não era apenas escritor: era aviador, repórter, pioneiro de rotas aéreas que
conectaram continentes. Viveu entre o risco e a contemplação, entre o céu e a palavra.
Sua morte, em 1944, em
missão de reconhecimento, sela a imagem de um autor em permanente travessia —
física e espiritual.
Talvez por isso O Pequeno
Príncipe fale tanto ao sentimento humano de exílio, de busca, de viagem
interior. O menino que vem de um asteroide distante é, de certo modo, a figura
do viajante eterno que Saint-Exupéry sempre foi.
Por que seguimos
traduzindo?
A pergunta permanece: por
que traduzir tantas vezes um livro já conhecido? Porque cada época lê O Pequeno
Príncipe à sua maneira. Porque cada língua oferece uma nuance diferente do
afeto.
E, sobretudo, porque a
obra se tornou uma espécie de espelho da humanidade — um lugar onde adultos
reencontram a criança perdida e onde crianças descobrem a profundidade do que
ainda não sabem nomear.
Traduzir O Pequeno
Príncipe é, em última instância, traduzir a si próprio.
Eu, colecionador de suas
edições, testemunho isso:
cada livro, vindo de
canto remoto do mundo, parece dizer a mesma frase com nova ternura.
E é essa multiplicidade
que mantém a obra viva.
Não apenas como
literatura, mas como experiência.
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